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24.12.2020

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Essa história registra o presente.

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Segundo semestre de 2020, uma crise pandêmica acontece desde fevereiro. Depois de meses sem resposta, com medo do futuro e receio de sair de casa, o nortista brasileiro, cansado de olhar suas próprias paredes, resolve que é hora de andar em busca do carinho de sua Mãe. 

 

Alguns devotos pagam suas promessas à Nossa Senhora de Nazaré caminhando de uma cidade a outra a pé, outros de bicicleta, outros de carro, e tem aqueles que saem da Catedral da Sé até a Basílica de joelhos. Um grupo de apoio sempre faz o caminho com esses promesseiros, garantindo que eles conseguirão pagar suas promessas até o final.

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"Desde fevereiro presenciamos nossa própria decadência."

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As pessoas agora se aglomeram em bares, praias, lojas, praças e qualquer lugar que traga de volta um estilo de vida que fica cada vez mais distante para retornar. Pensando nisso, imaginamos que não seria diferente com as festas religiosas.

Antes mesmo de sair a notícia de que no ano de 2020 não aconteceria o Círio de Nazaré, como sempre aconteceu, tudo indicava que a população, movida pela fé e devoção, iria às ruas agradecer e pagar suas promessas.

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Eu descansava em um canto da praça em frente a Basílica Santuário de Nazaré, no que seria o primeiro dia de Círio e presenciava as poucas pessoas que, como eu, conseguiram atravessar as grades da guarda municipal e chegavam aos portões. Alguns amarravam suas fitinhas ao fazer novos pedidos, enquanto outros se ajoelhavam para agradecer as preces atendidas. Foi entre um pedido e uma prece que Rogério Alves (40), devoto da Rainha da Amazônia, se aproximou contando muitas histórias que nem tive tempo de questionar. Talvez porque não soubesse o que perguntar e só queria escutar o que ele tinha a dizer e desabafar. 

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Para Rogério, e para muitos outros fiéis que conheci, o Círio continuava dentro de cada um - independentemente de haver romaria ou não. Porém, ver a Avenida Nazaré praticamente vazia o deixava melancólico. Segundo o devoto, não faria sentido um evento religioso acontecer somente quando é um grande evento. Todos os que estivessem presentes neste ano seriam a prova disso. 

Ainda faltavam dois dias para o jogo virar e os fiéis demonstrarem sua paixão. 

Sobre a pandemia, o devoto estava otimista. Para ele, em 2021 o COVID-19 não irá atrapalhar o Círio. Disse ter a impressão de que o que estamos passando agora é um castigo dado por nossos pais e devemos aprender com este momento. 

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"Nossa mãe está fazendo o mesmo.

Se é da vontade dela que não tenha o Círio, como todo ano, nós devemos obedecer. Ela saberá quando será a melhor hora para sairmos"

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Com ele e com muitos outros fiéis aprendi como o respeito e aceitação com o atual momento do mundo prevalece nas suas intenções.

 

Ao mesmo tempo que as palavras em suas camisas diziam "Fique em Casa", seus pés já estavam na rua caminhando em direção à Basílica para celebrar o Círio de Nazaré, com ou sem a romaria oficial.

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"Viva Nossa Senhora de Nazaré! Viva!" 

Assim ecoavam os fiéis por onde passavam.

Eu estava há 7 meses sem ver mais de 20 pessoas no mesmo lugar. Quando me deparei com mais de 500 foi uma mistura de adrenalina e emoção.

 

Enquanto caminhava pela avenida que leva o nome da santa, escutei um grupo batendo palmas e jogando palavras de incentivo. Foi quando avistei os primeiros pedaços de papelão no chão, criando uma trilha que era feita e desfeita a cada segundo. Duas pessoas ajudavam a carregar um corpo que ia de joelhos passo por passo enquanto outros dois se apressavam para tirar o papelão que estava atrás e trazê-lo para frente, em um movimento constante. Foi quando vi o primeiro promesseiro cair.  

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Mais a frente, avistei outros dois. Estavam juntos engatinhando pelas ruas como filhos em procura de sua mãe. As pessoas que passavam ao redor preenchiam seus murmúrios de dor e desgaste com orações e cantos. Um deles, com os olhos vermelhos, chorava enquanto suas pernas se arrastavam no papelão, o de trás estava usando máscara, óculos e roupa de proteção. Quando o vi com o crucifixo no pescoço sabia que ele seria a cara dessa história.

O personagem estava pronto e o tema era: Religiões Pândemicas. Descobri mais tarde que seu nome era Alex Walace Sena (34), enfermeiro que saiu do plantão e foi pagar sua promessa. Ele era o único promesseiro que estava usando proteção.

Mesmo assim, ninguém pode contestar o amor dos fiéis que foram pra rua em nome da Rainha da Amazônia. A fé estava para quem quisesse sentir, era só olhar nos olhos de cada fruto e aguardar seus sorrisos que pareciam me dizer "Eu te vejo e eu estou bem".

Por trás da minha máscara eu sorria de volta e seguia meu caminho em busca de mais registros.

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Um homem cantava o Terço da Misericórdia. Pessoas andavam de mãos dadas. Excursões chegavam e a imagem da Santa estampava camisas, lenços, colares, faixas e máscaras. 

Um grupo rezava a Ave Maria em coro quando vi a placa "Homenagem à mais de um milhão de vidas levadas pelo COVID-19. Saudades".  Naquele momento senti como se fôssemos o resto, aqueles que sobraram ou que somos parte dos que falta pouco tempo para ir embora também. Estávamos juntos da corda e segurávamos nela com força para não se deixar levar.

 

O último promesseiro que vi fazer seu percurso usava na cabeça um rosário, um pedaço de corda e uma chupeta rosa. Aprendi, com a família paraense que me acolheu nos dias do evento, que os objetos levados no dia do Círio simbolizam a graça alcançada. Provavelmente esse fiel pediu pela vida de seus filhos e conseguiu sua graça. Agora era hora de pagar a promessa. Com muita água sendo jogada em seu corpo, ele rastejava com as meias furadas, depois deitava no chão por vários minutos para reunir forças e se levantar mais uma vez, continuando sua jornada.

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Saí de lá comovida mas sem deixar de pensar se tinha pego COVID-19. Cheguei em casa e tirei toda a minha roupa, ainda com máscara, coloquei tudo em uma sacola, tomei um banho gelado e voltei para a estrada em direção a Salinas - cidade do litoral paraense onde estou enquanto concluo esse trabalho. Enquanto escrevo já se passaram uma semana e não apresentei nenhum sintoma.

 

Os dias que passei vivenciando meu primeiro Círio de Nazaré, o mais atípico que já existiu, serviram não só para registrar esse momento que mostra os valores do povo brasileiro perante uma pandemia mundial, mas também para entender a fé que fala mais sobre devoção do que religião. Os frutos de vosso ventre estavam nas ruas mais uma vez à procura dos braços de sua mãe, a Rainha da Amazônia, Nossa Senhora de Nazaré.

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"Mãe, teus filhos saíram as ruas, passaram por cima de qualquer autoridade pois somente respeitam a tua vontade.

Eles foram reforçar teu amor, procurar

teu consolo e pelos teus milagres.

O que estamos vivendo agora é uma oportunidade singular para mostrar como seus filhos sabem te adorar."

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A fotografia permite todas as formações possíveis da realidade, esta foi a qual eu vivi.

 

Os Frutos do Vosso Ventre é um projeto visual idealizado e produzido pela Agência Sangria.

Não somos católicos, mas somos de fé.  

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