

DIVINO
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12.07.2021


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Nascido no interior de São Paulo - onde a cultura popular é basicamente a cultura cristã -, vivia em meio aos festejos de Santo Reis, São João, e claro, o Divino Espírito Santo. As bases são as mesmas, mas as ramificações são distintas.
No nordeste temos a cultura baseada nos dias santos dos meses de junho e julho. Época de fartura na terra seca. No norte temos os bois que predominam. Já ao sul, a cultura brasileira assume nuances europeias e latino-americanas.
O interior de São Paulo parece um ser quase sem identidade. Quase, pois ela não é tão arquétipo quanto as do norte e nordeste, por exemplo. A necessidade surgiu dessa busca, dessa perda. Saber quem se é, de onde se vem, para quiçá, saber quem se é quando em algum lugar chegar.

Por sorte, por destino ou por simples sincronia, Seu Miguel e Dona Cacilda acabaram por serem os sogros de uma tia. Minha família por parte de minha mãe, é japonesa.
Meu avô chegou ao Brasil com 7 anos de idade e minha mãe aprendeu a língua portuguesa apenas aos 8, ao ingressar na escola fundamental.
Da parte de meu pai, já havia uma tradição mais, brasileira, digamos. Descendente de portugueses, já comungavam com o cristianismo e seus ritos populares. Nesta mescla entre o xintoísmo e o papado, me encontrei. Do distrito de Juquiratiba, município de Conchas saiu Celso, aquele que veio a ser meu tio, e devido a ele é que fomos convidados a celebrar a Festa do Divino Espírito Santo nas terras de seus pais. Esta família não é devota mas nem por isso é menos crente.

Entender a minha cultura é
muito importante para o reconhecimento de si. Para brasileiros isso é uma busca profunda e sutil ao mesmo tempo.



Neste momento me vi na hora e local correto para tentar encontrar algo da minha busca. Havia recentemente iniciado na fotografia como estudo e profissão. Acompanhei diversas festas, almoços, jantares e confraternizações. Fotografei com negativo 35mm, chromo 120mm, digital. Por 10 anos acompanhei essa história.
Ao início fui recebido com compaixão, mas desconfiança também. Uma terra onde todos se conhecem, onde todos têm o mesmo semblante, o mesmo porte físico. Meus olhos puxados e atentos atraiam atenção dos desavisados, mas lá estava na casa dos anfitriões, algo que me dava abertura e segurança aos retratados.



Algumas imagens foram enviadas impressas, todas em preto e branco. Não foram bem recebidas, não fui bem compreendido. Após algumas visitas, fui reconhecido e comecei a transitar transparente, sem chamar atenção daqueles que me viam. Até chegar ao ponto do casal Camargo me convidar para fotografar a celebração de bodas de 60 anos.
No período em que participei e registrei o Seu Miguel e a Dona Cacilda, eles já eram idosos. Seu Miguel, a princípio, andava pelos arredores da casa, passou por alguns problemas de saúde que a velhice trouxe. Houve festas em que recebeu a bandeira em uma cadeira de rodas, outras, acompanhado de muletas ou bengalas. Dona Cacilda, Mulher forte, deu a luz e criou 5 filhos, observava e regia de longe os afazeres. Na prática, Véio comandava a cozinha, era dele a colher de sal a temperar as panelas. A emoção era muita. A devoção real vemos nos olhos que enxergam a bandeira com respeito. Seu Miguel respirava fundo. Os lábios tremiam enquanto beijava a bandeira ao recebê-la.


A festividade começa um dia antes.

Tradicionalmente a família anfitriã sacrifica uma rês para a preparação da refeição, como toda cultura que aprendemos ao longo de nossas vidas, o sacrifício animal é é o ritual de agradecimento e pedido, desde o gênesis. O menu é simples mas substancioso, são produtos da terra, como a mandioca, o feijão, o arroz e a carne. A preparação fica a cargo do Véio, primogênito do casal Camargo, que comanda a equipe formada pelos amigos e vizinhos. Todos trabalham pela fé.
No dia da festa a comitiva chega com um mastro de madeira com cerca de 10 metros de altura. Idosos, jovens e crianças a carregam. À frente vem a bandeira em homenagem ao Divino Espírito Santo, carregada por membros da família que trouxeram boas novas, de bons agouros, de boa sorte e fortuna.
A bandeira e o mastro são recebidos pela comunidade com fogos e rojões. Alguns que solicitam bênçãos se deitam encobertos por um lençol para que a bandeira transpasse seus corpos e os abençoe. O mastro então é levantado pela comitiva, há a lenda de que o mastro não pode ser tocado pelas mãos até ser firmado ao solo. Cada membro da comitiva carrega uma lança, ou um remo, com os quais fazem o levante do mastro. Enfim a bandeira adentra a casa do anfitrião para abençoar o lar.



Cantos e rezas são celebrados na residência. A família e os amigos mais próximos estão em volta do altar simplório montado na sala da casa.







A comunidade toda se reúne pelos quintais e áreas externas da casa. Apenas os responsáveis pela comida não participam do levante do mastro. Eles esperam que a bandeira venha até eles e abençoe suas mãos sagradas que fazem o banquete. A bandeira vai aos fundos do salão, passa em revista por todos os tachos e panelas sobre fogos de lenha. Os ali presentes, em semicírculo, rezam o pai nosso e a ave maria. O salão então é aberto. Os primeiros a receberem o banquete são os membros da comitiva, que antes de serem servidos agradecem e celebram mais uma vez, com cantos e rezas pelo alimento que lhes será servido. Logo após a comunidade é recebida no salão. Por vezes seguidas o salão se enche e se esvazia, até a última pessoa receber a sua parte do alimento, e a cada nova parcela, são entoados o Padre Nosso e a Ave Maria. Os últimos a comerem são aqueles que têm toda a refeição preparada. E nunca há falta de alimento. Nunca alguém comparece e retorna com fome. Muitos, inclusive, retornam com uma boa porção pronta para os próximos dias.

