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trash/vandalismo

por Codinome Manhattan

03 de janeiro de 2020, florianópolis: tudo sempre começa errado.

 

     após o horário de trabalho, por volta de 19:00, 19:30, as pessoas começam a ir embora e o centro da cidade rapidamente torna-se desolado, sem vida, sem efervescência. ele gela e leva você junto para baixo da terra, direto ao esgoto. o cheiro é ruim, a cidade é cinza, o centro é pequeno e tudo o que você vê é escuro - as luzes da cidade não vem de prédios, mas sim dos postes de luz rachados e feitos de concreto com areia de praia preste a cair sobre a cabeça de qualquer infeliz. quem caminha por estas ruas em horários noturnos são transeuntes sem destino, bêbados, prostitutas e pessoas que perderam o horário do ônibus e caminham a passos rápidos para chegar no terminal central. a cidade vive sob uma máscara praiana de veraneio intenso e festivo quando na verdade é só mais um rato no telhado.

 

     um amigo e eu somos alguns desses que caminham a passos rápidos, mas dessa vez em direção ao coração da cidade - na verdade, em uma de suas artérias. chegamos em frente ao taliesyn, um boteco meio pub de quinta categoria que não suporta nem trinta pessoas, um pouco antes das 20:00. o local é um ponto de encontro de punks, góticos, hippies e artistas - apesar de tudo, a cidade consegue unir todas as tribos sem o menor esforço.

     sento ao meio fio. atrás de mim uma parede gigante e amarela repleta de lambe-lambes, posters, ilustrações e fotografias, todas em preto e branco, sem cores, sem vida ou significado, a maioria rasgadas e com cheiro de urina, coladas por algum vagabundo que se acha artista ou algum artista que é vagabundo. em um dos vãos entre a parede e a esquina tem um travesseiro jogado em cima de garrafas de cerveja e musgo onde a maioria das pessoas em situação de rua dorme.

     retiro minha olympus da mochila e começo a colocar o filme. o boteco ainda não abriu e em sua frente tem dois homens de meia idade conversando com algum rastafari sobre filosofia, enquanto duas mulheres fumam um cigarro e conversam sobre drogas. há cerca de 50 metros dali, outro pub, este reúne cerca de trinta pessoas, talvez mais, todas elas jovens e absolutamente idênticas: homens de barba e cabelo comprido loiro vestindo flanelas; homens de barba, carecas e vestindo flanelas; mulheres com os braços repletos de flash tattoos e piercing e mulheres de piercing e roupas de couro - parece uma reunião de família que deu errado. a música é eletrônica e no taliesyn apenas o silêncio.

 

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     aos poucos a banda chega: a famigerada farra do bowie, uma banda de glam rock formada por pais com um público duvidoso - esta banda me atingiu com força em 2016 quando comecei a me integrar na cena musical catarinense e descobrir diversas bandas, a maioria de indie rock querendo ser o novo los hermanos e os novos los hermanos querendo ser os novos strokes, mas não a farra do bowie - não, eles não. o que começou com um bando de homens em seus trinta e poucos querendo homenagear o único deus possível, acabou virando uma banda de músicas autorais, roupas estranhas, espalhafatosas, uma lycra de tigresa, uma camiseta d’o homem que caiu na terra e maquiagem fajuta. para mim, drag queens ao reverso, para eles, eu não sei.

     entre um cigarro e outro, cumprimento cada um deles e penso que tipo de acontecimento vai ser gerado lá dentro.

     as portas se abrem. esse é o meu primeiro trabalho autoral, uma busca espiritual nervosa por fotos com propósito. as paredes internas são negras com marcações de giz, desenhos, frases, capítulos da bíblia, nomes de bandas, algumas hashtags políticas, referências culturais pop e diversas menções a maconha e ácidos. o cheiro é de mofo com urina e a música é alta, mas indistinguível. o palco é ¾ do tamanho do local e na frente dele não cabem mais do que dez pessoas e isso me lembra que meu amigo e eu entramos de graça por eu ser o fotógrafo da banda. esse é o primeiro show deles que eu vejo e até agora o total de pessoas no local são os membros da banda, três de suas mulheres, os três donos do boteco, duas mulheres mais velhas e drogadas, um rastafari e dois velhos. que tipo de público ou lucro será que eles vão ter?

 

     compro uma cerveja por dez reais e a música começa a tocar, vou até o palco e me sinto desconfortável pois existe uma parede logo em frente a ele que divide o ambiente em dois e não consigo compreender como as pessoas vão assistir este show. começo a fazer umas fotos, eles vestem roupas normais e não se movimentam, o vocalista mesmo está estático. na frente do palco, meu amigo e eu. me sinto frustrado e faço umas quatro ou cinco fotos até a música parar, era apenas a passagem de som.

     entro com a banda dentro da sala onde eles fazem maquiagem, uma mistura de camarim, com armazém e banheiro. são seis pessoas em três metros quadrados, ninguém deu a descarga. a câmera sai do meu peito direto para meus olhos e fotografo tudo o que eu posso - minha câmera não controla a velocidade então fico nervoso e apenas penso que todas estão ficando ótimas. para eles é só mais um dia de show, para mim é um momento estranho. eles colocam suas lycras, passam maquiagem, colocam batom, blush, fumam maconha, jogam o baseado no vaso e conversam sobre o passado. demora cerca de vinte minutos depois do combinado para o set começar e durante este tempo eu já estou na metade de meu primeiro rolo de fotos.

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     existe um único homem negro na platéia, ele está retraído ao fundo sentado em um sofá, existe uma cópia tipicamente brasileira de john lennon, umas quatro mulheres de meia idade e alguns hipsters que devem ter se perdido dos pais e confundido o taliesyn com a reunião de família ao lado. cada vez que eu olho para essas pessoas eu penso que essa banda e este país são maravilhosos, é uma cultura misturada com a agonia de viver, uma triste melancolia sobre não saber para onde ir e onde se está. quem iria para um show de uma banda dessas se não fosse para admirar o brasil e cantar músicas como born to be a faggot ou raised to be a wanker? um arrepio gelado atingiu a minha espinha durante um breve momento de euforia. a música começa a vibrar e as pessoas a dançar, o som dos vocais é horrível, a guitarra quase abafa o baixo por completo e distorce muito a sonoridade já distorcida que ela deveria ter, enquanto o baterista está contraído ao fundo em seu próprio mundo. aos poucos, em uma crescente, a música aumenta o entusiasmo das pessoas, não demora muito para as drogas e o álcool começarem a tomar controle. de repente estava todo mundo em um transe, pois os locais possuem uma mistura de dança específica, algo entre o rockabilly, trance e reggae com um pouco de coceira. todos eles se movimentam com os braços como se estivessem prestes a realizar algum feitiço, se comunicando espiritualmente entre um e outro. em um breve momento todos estão assim.

     aos poucos o número de pessoas aumenta e estou no meio de uma contracultura psicodélica enamorada com o punk.

 

     eu tenho apenas mais um rolo, é colorido e acho que a estética não vai combinar. eu faço algumas fotos e penso apenas na pós-produção delas, deixando todas em preto e branco. cada música que passa eu fotografo menos, apenas acompanho a performance deles. é algo hipnotizante. o vocalista está incorporando alguém entre mike patton e sinead o’connor enquanto o resto da banda parece sair diretamente dos ensaios da jovem guarda, uma mistura de poses, dança e comunicação dramática que traz um ar de suspense para uma banda formada por pais. é intrigante. as pessoas acham intrigante também e eu já não sei mais o que estou fazendo ali - apenas sei que sou limitado há dois rolos de 32 poses cada um e já estou na metade do segundo. o show continua e antes do final lembro que tenho um ônibus para pegar e faltam vinte minutos para sair. o rolo acaba rápido, o show continua e eu percebo que não fotografei nem um membro da audiência, e me sinto mal por isso. durante alguns momentos me senti dentro de um show saído diretamente dos anos 70 e agora eu sou uma das pessoas que caminham acelerado para não perder o ônibus enquanto anoto mentalmente a data que eles vão fazer o show do carnaval.

34641 - 2263 - Superia Xtra - Renato Per
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